Era um dia igual aos outros. Outono. As folhas amarelas
atapetavam o chão húmido da chuva do dia anterior e o céu apresentava laivos
azul cinza numa promessa de aguaceiros. Presa à trela a cadela de raça puxava a
dona ao longo do muro do jardim francês no centro da cidade. Proibida a entrada
a cães. Vá-se lá saber a razão do letreiro afixado na entrada. Será que os cães
vadios sabem ler?
Uma voz feminina, de
cristal, num sotaque brasileiro inconfundível soou vinda do interior do jardim:
- Vá trabalhar malandro! Isso é falta do que fazer! Você indo
trabalhar isso te passa tudo.
A mulher que passeava a cadelita cinzenta de raça Schnauzer parou. A voz zangada prendeu-lhe
a atenção. De trás do enorme coreto onde outrora tocaram bandas filarmónicas
surgiu uma figura de mulher pequena, com ar moderno, jovem, ostentando uma
longa cabeleira aos caracóis e uma pele morena que não deixava dúvidas sobre a
sua origem africana. Caminhava lentamente na direcção de um bebedouro de água. Na
mão uma rosa amarela. Circundando o pequeno jardim a mulher com a cadela pela
trela, não conseguia tirar os olhos da frágil figura. Triste. Com o peso do
mundo nos ombros. Parecia. No interior do jardim uma figura de homem acabado
passava afastado uns metros. Coxeava e vociferava impropérios contra alguém. A mulher
da cadela presa pela trela reconheceu-o. Um toxicodependente residente sempre
na busca de moedas que algum velhote que apanhar sol ali naquele sítio
interdito a cães, tenha a compaixão de lhe dar. Para comida justifica.
Mais uns passos e os olhos sempre atentos seguem a jovem que
caminha em direcção às paredes de mármore do coreto. No rádio Gal Costa canta “Chuva
de Prata”. A mulher encosta a rosa ao rosto, os braços ao mármore frio e chora.
Chora. Toda ela encostada ao coreto com a rosa na mão e os braços a esconder o
rosto.
Do outro lado do muro a mulher, parada, fica com lágrimas
nos olhos. Que história de vida estará ali que carrega tanta solidão e
sofrimento. Uma história que veio do
outro lado do oceano em busca de uma vida melhor. Uma vida que se cruza com
outra, as duas com algum vazio por preencher.
A mulher com a cadela presa à trela afasta-se levando
consigo aquele sentir triste de outra pessoa, desconhecida, mas que lhe recordaram
outras vidas, vidas de emigrantes carregando saudades do país que deixaram.