Nas rugas adivinhava-se a imensa
emotividade de Maria: fora uma vida inteira a viver em pleno e a sentir.
Naquela noite ao ouvir os primeiros acordes do piano e a voz cristalina da
solista os olhos de Maria encheram-se de lágrimas a transbordar de
contentamento e prazer. À memória chegou-lhe as longas noites de inverno
acompanhadas pelos gemidos dos nocturnos de Chopin e o firmamento estrelado que
vislumbrava através da janela da sala enquanto ele tocava. A sua alma poética
conseguia nesses momentos escutar a música das estrelas.
Foi nesse estado de saudade e embalo poético,
que um breve instante do passado se desenhou na sua memória: nublado, distante,
mas tão vivo. A idade que tinha não sabia, só sabia que aquela música estava
entranhada na sua pele até ao último acorde. Ouviu-se uma enorme onda de
aplausos e ela rejubilou de alegria e orgulho. O seu filho tinha alcançado a
glória naquela noite. O piano, a guitarra portuguesa – que quase chorava – e a
fadista que entoou “ Povo que lavas no rio”, arrancam-lhe lágrimas de alegria e
saudade. Saudade da meninice em que a mãe lhe dizia «o pai toca a música das
estrelas Maria, vê como elas saltitam» e apontava para os pontinhos luzentes lá
no firmamento, escuro como breu, através da vidraça da janela. Era uma saudade
boa, sã.
E aquela música recordava-lhe outras
músicas, tão diferentes, às vezes dançadas, outras só sorvidas em milhares de
sítios, quando ainda era jovem: bares, salas de cinema, viagens, ruas. A música
de quando era jovem e conheceu o homem que a acompanhou a vida toda, na dor, na
alegria, mas também na partilha de ideias e pensamentos. Nos livros que leram,
nas batalhas que travaram, na educação doa filhos. Aquela música era a sua
alma, a alma de uma menina que cresceu a ouvir o piano dedilhado pelos dedos
firmes do pai, homem sensível, e um muro de protecção. Imersa nos pensamentos
nem reparou que o marido estava a observá-la, ali, a dois passos dela com um ar
que era de amor e complacência. Já sabia que sempre que o neto tocava aquela
música, viajava para a infância, não com tristeza, mas com uma nostalgia de
quem já viveu mais de metade da vida e quer aproveitar todos os momentos que
lhe restam. Avançou até ao marido, apoiada na bengala – admirou-lhe as têmporas brancas – e, de mãos dadas, caminharam até ao palco para abraçarem o artista da guitarra portuguesa: o neto.
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