" Aos seus pés estendia-se Lisboa e o rio Tejo. Navios ostentado bandeiras de diversas
nacionalidades descansavam nas águas do rio, à espera de melhores dias para zarpar através do atlântico.
A cidade vista do castelo de São
Jorge continuava a ter aquele encanto mágico que ela recordava sempre. Era como
apreciar uma pintura.
Helena ficou radiante com o convite de Ricardo para almoçarem numa tasca
típica, e subirem até ao miradouro passeando pelas ruas intricadas do bairro de
Alfama.
- Estás muito silenciosa querida – questionou-a.
«Querida» era uma palavra comum na boca de Ricardo desde que era criança mas, aos vinte anos, soava-lhe estranha. Pôs os olhos no chão, corada.
- Passou tanto tempo. Se soubesse como senti a sua falta. Mais ninguém se
dedicou a mim como o – ia dizer o padrinho mas parou a tempo - senhor Ricardo
o fez.
- Senhor não, por favor, Ricardo está bem - emendou ele.
- Porque partiu? Nunca acreditei nas histórias que ouvi.
Ricardo sorriu-lhe e passou-lhe o braço pelos ombros num abraço terno.
Sim, porque partira? Era uma boa pergunta, mas não lhe podia revelar que já
não suportava a fama de libertino que criara desde os tempos da universidade, e
que o exílio forçado lhe pareceu a melhor forma de se escapar à vida boémia que
levava em Lisboa. Mas a verdadeira razão era outra e dessa não podia falar-lhe,
mesmo. Se não tivesse partido, não estaria ali, ao lado dela. Quem sabe já não estaria vivo.
Afastou-se ligeiramente.
- Sei lá…tanta coisa…queria aventuras, e provar a mim próprio que não
precisava da fortuna dos meus pais.
Era uma meia verdade, mas não queria manchar a sua imagem perante Helena.
Helena aproximou-se e enfiou o braço no dele como antigamente.
Ricardo apertou-lhe a mão pousada no seu braço esquerdo e sorriu-lhe. Da
menina que conheceu pouco restava, apenas os grandes olhos verdes e os mesmos
cabelos castanhos de ondas largas a emoldurar-lhe o rosto. Helena devolveu o
sorriso e um sentimento estranho passou entre os dois.
- Tens namorado Helena?
- Não. E o padrinho é casado? Tem filhos?
- Não sou teu padrinho Helena. Agora somos dois adultos e não consigo ver
em ti a menina a quem ensinei a gostar de livros…ainda gostas de livros?
Assentiu com a cabeça.
- Desculpe, é difícil habituar-me a tratá-lo de outra forma, o senhor não
mudou assim tanto e…seja – rendeu-se - vou tratá-lo pelo seu nome. Ricardo. E
sim,continuo a devorar livros, mas não consigo convencer os meus pais a
deixarem-me continuar os estudos – e atreveu-se a levantar o rosto para o
encarar.
- Uma injustiça, eu sei. – e beijou-lhe a ponta dos dedos da mão pousado no
seu braço.
Helena enrubesceu como um tomate maduro daqueles que os pais plantavam lá na horta do Alentejo.
- Não precisas de ficar corada. E fica descansada não sou casado, não tenho
filhos, sou livre como um passarinho.
- Pelo menos não corro o risco de aparecer uma mulher, por aí aos gritos, a
reivindicar o marido – afoitou-se a dizer em tom de provocação.
- Pois não – confirmou ele com um sorriso. – Olha – e apontou para o rio – lá vai um barco
para a América carregado de refugiados.
- Ummm… Pensa em partir de novo?
- Não sei. A guerra está a alastrar e tenho que pensar no que fazer à
fazenda.
De repente o olhar dele ficou distante e uma ruga de preocupação surgiu na
sua testa. Helena continuou a caminhar a seu lado mas manteve-se em silêncio.
Era a primeira vez que andava de braço dado com um homem e o seu coração estava
disparado. O fascínio que sentia por ele quando era criança manteve-se, mas
agora era um fascínio diferente: um fascínio de mulher, o que a deixava muito
perturbada. A madrinha Catarina não ia gostar nem um pouco que se aproximasse
do seu filho preferido.
**
- Boa tarde senhor Ricardo. Os senhores, seus pais, esperam-no no
escritório. – disse o empregado afastando-se em direcção à zona de serviço da
casa.
- Obrigado Martinho.
Helena percebeu que era um sinal para se afastar. A madrinha não lhe
permitia muito mais que tomar as refeições com eles. Participar em conversas de
família era-lhe completamente vedado.
- Obrigado pelo passeio senhor Ricardo.
Ricardo tomou-lhe as duas mãos e beijou-as fazendo-a corar de novo.
- Ricardo. O meu nome é Ricardo. Até daqui a pouco – e afastou-se em
direcção ao escritório do pai, ao fundo do longo corredor da mansão.
José Luís e Catarina estavam sentados com ar carrancudo.
- Aqui estou. Aconteceu alguma coisa para me mandarem chamar desta forma
tão…formal?
- Na realidade aconteceu – disse a mãe com ar sério.
- Não exageres Catarina – advertiu o marido que não concordava com as
posições drásticas da mulher.
Ricardo sentou-se na poltrona de veludo azul, junto à secretária de pau-rosa e disse:
- Queira dizer, minha mãe, sou todo ouvidos.
A mãe levantou-se, ajeitou a saia e o cabelo e virou-se para o filho com
cara de caso.
- Por tua causa vou ter que enviar Helena para o Alentejo - disse a
matriarca muito séria.
- Creio não estar a entender?
- Não fica bem a um Santana desfilar na rua com uma empregada.
José Luís abanava a cabeça em sinal de discordância. Nunca tinham tratado a
rapariga como empregada. Se Helena era afilhada de Catarina e considerada como
se fosse da família, porquê tanta exaltação?
- E qual é a profissão dela dentro desta casa? – perguntou Ricardo com
ironia.
- Ora Ricardo! Não seja insolente! Sabe bem que Helena é filha dos nossos
caseiros.
- Sem dúvida que sei. Mas sempre frequentou a casa como se fosse da família
e fomos nós que lhe pagamos os estudos, creio eu! O que torna a condição social
dela, um pouco diferente. Helena é uma jovem com estudos minha mãe, ou já se
esqueceu?
- A tua mãe é uma exagerada – proferiu José Luís. – Já lhe disse que se
não quisesse que ela frequentasse a sociedade, não a devia ter convidado para
vir para Lisboa, muito menos permitir-lhe que convivesse com os nossos amigos.
A tua mãe tem um grande problema de consciência a atormentá-la – aventou.
Ricardo coçou a cabeça, não entendeu o que a consciência da mãe – que
raramente se manifestava- teria a ver com Helena.
- Na verdade Ricardo regressou para tomar conta das propriedades, não foi
meu filho? Não deve perder tempo com…
- Com o quê, minha mãe? A senhora já viu o meu tamanho? Por acaso ainda se
recorda da minha data de nascimento? Desculpe-me a insolência mas eu não
dependo de vocês para viver, tenho os meus negócios e tomar conta dos vossos é
uma questão a ponderar. O meu irmão deve ter uma palavra a dizer sobre isso. Ou
não?
- António seguiu a carreira militar, não abdica dela, sobretudo agora que uma guerra se avizinha. Imagine se invadem Portugal!
- Talvez ele ainda seja útil nesta guerra, apesar de sermos neutros –
ironizou Ricardo.- Tenho a certeza que Hitler irá tentar conquistar o mundo e
depois disso nada vai ser igual.
- Não duvido uma palavra do que
disseste, filho. É uma bênção se
Portugal não for engolido por este conflito – disse o pai.
- Há territórios mais apetecíveis a leste, senão pode crer que já
estaríamos a fazer continência ao Fuher e a dizer Heil Hitler. Na
realidade estamos a fazer-lhe continência, mas de forma disfarçada.
- Não fales o que pensas em voz alta, Ricardo. Não te quero ver atrás das
grades. Mas já fazemos a saudação nazi, sim. Chegaste há pouco filho, vais
ficar surpreendido com o que se passa por aqui. As coisas pioraram. É ver a
Mocidade Portuguesa a fazer a saudação…e vais ficar abismado - disse o pai.
- Já nada me espanta neste país assombrado, meu pai. Estou muito bem
informado – deixou escapar.
- Ricardo, desta vez abstenha-se de emitir opiniões em público com os seus
amigos, aqueles, bordeaux, escarlates, vermelhos...ou… sei lá o que eles
são! –vociferou a mãe muito irritada.
- Olhe minha mãe, não sou homem de me vergar. Não vou fazer uma
manifestação contra o regime, fique descansada, não por falta de vontade, mas porque não sou tolo
e tenho amor à vida, mas não abdico das minhas convicções.
O pai coçou o cocuruto da cabeça e acendeu um cigarro. Não sabia como o
filho tinha apanhado aquelas ideias…e temia pela sua segurança. Mas reconhecia
que ele tinha coluna vertebral. Era firme nos seus ideais. Ele próprio não via
com bons olhos a posição do presidente do conselho. O povo a passar fome todos
os dias, e os camiões do exército português a carregarem diárimante com latas
de conserva de sardinha em direcção à fronteira, para alimentar os inimigos da
europa.
- Quanto à vossa herdade no Alentejo, acho por bem contratarem um
administrador por uns tempos. Talvez possa ajudar, mas tenho que decidir o
destino dos meus negócios, que possuo… na europa e em África, sobretudo quero
deixar as pessoas que trabalham para mim em segurança. Sou responsável pela
vida deles – disse para os pais.
Ricardo levantou-se e dirigiu-se para a porta.
- Se me dão licença, vou tomar um banho.
- Ricardo meu filho! Peço-lhe que não volte a sair com Helena. Aliás,
afaste-se dela, pelo nosso bem.
- Quando a mãe me der um bom motivo para o fazer, pondero a situação. Até
lá, desculpe-me, mas a Helena é alguém que eu prezo muito.
E saiu da sala fechando a porta atrás de si com alguma veemência.
- Eu avisei-te – disse o marido.
- Eu é que sei José Luís! Não tens noção do perigo? Vou fazer tudo para os
afastar.
- Acredito. Sempre foste uma mulher determinada. – ironizou. – Mas há
batalhas impossíveis de travar. Sabes que o teu filho sempre foi determinado. Tanto
como tu – atacou-a.
Catarina nem se dignou olhar para o marido. Antevia o pior cenário: Ricardo
apaixonado por Helena, algo que tinha que evitar a todo o custo. Desde que Helena
começara a gravitar em torno de livros, que Ricardo lhe passou a dar atenção, o
que durou até ele partir para África. Mas não ia tolerar esta aproximação. Nem
por cima do seu cadáver, ou melhor, teriam que a matar para que os dois…enfim,
nem queria pensar nisso. "
Destino, Paixão e Vingança.
Em 1941, Lisboa era uma cidade perigosa.